Há mais de 30 anos, quando eu tinha uns 15 anos de idade, eu ouvia o Raul Seixas cantando com seu sotaque arrastado, no som auto de algum vizinho, e me incomodava com o sotaque dele… Até que alguém me deu um livro do Paulo Coelho pra ler, e eu gostei, e quis saber mais sobre o cara, e fui descobrir que ele era o autor de muitas músicas do Raul, então fui ouví-las e aquele preconceito com o sotaque foi se diluindo, dissipando, e sumiu. Não foi algo breve, mas sumiu, e o mais interessante, eu comecei a me encantar pelas características das pessoas, que são trazidas justamente no sotaque delas, e como eu estava aflorando, curtindo ver dentro delas, me maravilhando com o que o ser de cada um pode ser, não havia outro caminho senão eu apreciar cada sotaque que me era apresentado.
Hoje sou um paulista que imita alguns sotaques, que adora sotaque mineiro, nordestino, sulista e todo e qualquer dialeto e sotaque que tenha passado por mim. Também fiz confusão com sotaque e dialeto, e hoje me regozijo com o “cantar” de cada região do nosso Brasil, que me presenteia cada vez que vejo alguém falar num sotaque que eu ainda não tinha ouvido… E fico ali me deliciando, tentando identificar de onde veio aquela variedade.
Hoje eu assisti a um vídeo delicioso do recém descoberto (pra mim) Bráulio Bessa, e não pude deixar de vir compartilhar. É um presente de sexta-feira, numa época que eu terei que escrever aqui qual é, para não esquecermos que estava foda, foi um arrocho só! Mas esse COVID-19 sem dó, passou que foi pro cabrobó! =)
Agora vamos à poesia!
O Linguajar Cearense (Josenir A. de Lacerda)
Recitado por Braulio Bessa
(Texto na íntegra abaixo do vídeo!)
“Linguajar Cearense”, de Josenir de Lacerda
Todo poeta de fato
É grande observador
Seja da rua ou do mato
Seja leigo ou professor
Faz verdadeira pesquisa
Vasto estudo realiza
Buscando essência e teor
Por esse nato talento
Na hora de versejar
Busca o tema e o momento
Visa o leitor agradar
Não sente conformação
Se não passa a emoção
Que dentro do peito está
Neste cordel-dicionário
Eu pretendo registrar
O rico vocabulário
Da criação popular
No ceará garimpei
Juntei tudo, compilei
Ao leitor quero ofertar
Se alguém é desligado
É chamado de bocó
Broco, lerdo e abestado
Azuado ou brocoió
Arigó e zé mané
Sonso, atruado, bilé
Pomba lesa e zuruó
Artigo novo é zerado
Armadilha é arapuca
O doido é abirobado
Invencionice é infuca
O matuto é mucureba
Qualquer ferida é pereba
Mosquito grande é mutuca
Quem muito agarra, abufela
Briga pequena é arenga
Enganação, esparrela
Toda prostituta é quenga
Rapapé é confusão
De repente é supetão
Insistência é lenga-lenga
Qualquer tramóia é motim
Solteira idosa é titia
Mosquitinho é mucuim
Recipiente é vasia
Meia garrafa é meiota
O exibido é fiota
Travessura é istripulia
Bebeu muito é deodato
Brisa leve é cruviana
O sujeito otário é pato
Cigarro curto é bagana
fugir é capar o gato
O engraçado é gaiato
Quem vai preso tá em cana
Ter mesmo nome é xarapa
Muito junto é encangado
Água com açúcar é garapa
Cor vermelha é encarnado
Muita coisa dá mêimundo
Sendo mundim é raimundo
Valentão é arrochado
A rede velha é fianga
Com raiva é apurrinhado
Careta feia é munganga
Baitinga é o mesmo viado
O bom é só o pitéu
Bajulador, xeleléu
Sem jeito é malamanhado
Bater fofo é não cumprir
Etecetera é escambau
Sujar muito é encardir
Quem acusa, cai de pau
Confusão é funaré
Carta coringa é melé
Atacar é só de mau
Qualquer botão é biloto
Mulher difícil é banqueira
Pequenino é pirritoto
Estilingue é baladeira
Qualquer coisa é birimbelo
Descorado é amarelo
Sem requinte é labrocheira
Um perigo é boca quente
Porco novo é bacurim
Atrevido é saliente
Quem não presta é croja ruim
Dedo duro é cabuêta
A perna torta é zambêta
Coisinha pouca é tiquim
Quem briga bota boneco
Sem valor é fulerage
Copo pequeno é caneco
Estrada boa é rodage
O tristonho é capiongo
Galo ou inchaço é mondrongo
E a ralé é catrevage
O velho ovo estrelado
É o bife do oião
Nervoso é atubibado
Repreender é carão
O zarôlho é caraôi
Enviezado, zanôi
Inquieto é frivião
A perna fina é cambito
Dar o fora é azular
Muito magrelo é sibito
Pisar manco é caxingar
Rede pequena é tipóia
Tudo bem é tudo jóia
Fazer troça é caçoar
A expressão “dá relato”
Que atinge mais de légua
“Tá ca peste!” “só no crato!”
“Tá lascado!” e “aarre égua!”
“Corra dentro!” ” qué cirmá? ”
“É de rosca? “éé de lascar! ”
“Vôte!” “ôxente! “isso é paid’égua!”
Se é muito longe, arrenego
Que Deus do céu nos acuda
É pra lá da caixa prego
Lá no calcanhar do juda
Nas bimboca ou cafundó
Nas brenha ou caixa bozó
Onde o vento a rota muda
Chamuscado é sapecado
Nuca, cangote é cachaço
Meio tonto é calibrado
A coluna é espinhaço
Se está adoentado
Tá como diz o ditado:
“Da pucumã pro bagaço”
Cearense tem mania
Chama todo mundo zé
Zé da onça, Zé de tia
Zé ôin ou Zé Mané
Zé Tatá ou Zé de Dida
Achando pouco apelida
Um bocado de Zezé
Fazer goga é gaiofar
O que é longo é cumprissaio
Provocar é impinjar
Toda pilôra é desmaio
Salto ligeiro é pinote
Bando, turma é um magote
Cesto sem alça é balaio
A comidinha caseira
Tem fama no Ceará
Tipicamente brasileira
Faz o caboco babar
No bar do mané bofão
Pau do guarda, panelão
O cardápio vou citar:
Sarrabulho, panelada
Mucunzá e chambari
Tripa de porco, buchada
Baião de dois com piqui
Tem pão de milho e pirão
Carne de sol com feijão
Tijolo de buriti
Papo longo e sem valor
É “miolo de pote”
Muito esperto é vivedor
Adolescente é frangote
Soldado raso é samango
A lagartixa é calango
O tabefe é cocorote
A lista é quase sem fim
Não cabe num só cordel
Tem alpercata, alfinim
Enrabichada e berel
Chué, baé, avexado
Bãe de cúia, ôi bribado
Quebra-queixo e carritel
Tem visage, sarará
Tem bruguelo e inxirido
Rabiçaca e aluá
Ispritado e zói cumprido
Bunda canastra, lundu
Dona Encrenca, sabacu
Bonequeiro e maluvido
O cearense é assim:
Dá cotoco à nostalgia
A tristeza leva fim
Na cacunda da euforia
Dá de arrudei na carência
Enrola a sobrevivência
E embirra na alegria.